Revista Escrever

OS PERSONAGENS EM JORGE AMADO

Neste bloco transcrevemos um pequeno texto, extraído de uma entrevista que Jorge deu, em Junho de 1981, a Roberto Espinosa (RE), do Literatura Comentada:

R.E – Quer dizer que você começa tentando apreender a pessoa no personagem e acaba prisioneiro do personagem?

J.A. – O PERSONAGEM É QUEM FAZ O ROMANCE! Quando é o autor que faz o romance, o romance não presta. Pelo menos no meu caso. Sou incapaz de contar uma história.

Zélia, minha mulher, senta aí com os netos e inventa as histórias mais maravilhosas. Eu fico fascinado, sou completamente incapaz de inventar histórias. Quando vou para máquina de escrever, tenho na cabeça os personagens, os ambientes, as ideias... Tanto que o começo de qualquer livro é sempre extremamente difícil para mim.

E isso dura até que eu coloco de pé, ou seja, até que os personagens começam a se colocar de pé. Aí eles vão e constroem, eles próprios, a sua história. E eles não só constroem, como às vezes se recusam a fazer o que eu quero.

R.R. – Dê um exemplo.

J.A. – Bem, certa vez eu estava ali na máquina, escrevendo o final do livro “Dona Flor e Seus Dois Maridos”. Minha sobrinha Janaína me perguntou “como é que vai terminar o livro, meu tio?”

Eu respondi: Como eu estou vendo a coisa, ela vai se entregar ao Vadinho, mas como é muito marcada por esse preconceito todo, é uma pequeno-burguesa cheia de preconceitos, vai ficar desesperada. E, como ela já fez o ebó para ele ir embora, no momento em que ele for... ela vai com ele! Eu penso assim, uma coisa meio poética, os dois desaparecendo, o outro marido entrando e vendo ela morta na cama.

No dia seguinte, revi a cena e fui continuar. O que aconteceu então? Depois que Vadinho fez amor com ela e foi embora, o marido entra no quarto, possui Dona Flor e ela acha ótimo! Então ELA, e não eu, resolveu ficar com os dois. Eu não esperava que Dona Flor fosse capaz de romper aqueles preconceitos todos. Mas o amor é muito forte, você sabe, e quando são dois amores, fica mais forte ainda. Dona Flor impôs o fim do livro.

Toda vez que o personagem está conduzindo o livro, você sabe que o livro está andando. E, toda vez que o personagem reage contra qualquer coisa, é você que está errado.

COMENTÁRIOS: Escolhi este pequeno trecho de entrevista para demonstrar uma grande realidade. Nós, escritores, escrevemos muito mais com o nosso inconsciente do que com nosso consciente. Nós fazemos um delineamento, imaginamos um enredo, cenários, épocas e então esbarramos no que há de mais importante num romance: os personagens. É ao redor deles que tudo gira. A importantíssima arte do diálogo em ficção só faz sentido a partir dos personagens que dialogam. Ou seja, como muito bem disse Jorge Amado, O PERSONAGEM É QUEM FAZ O ROMANCE.

O PERSONAGEM E O INCONSCIENTE DO AUTOR

Estas afirmações de Jorge Amado mostram como o PERSONAGEM é capaz de dominar o autor e é capaz de forçá-lo a dar novo rumo à história. Evidentemente, o que nós queremos dizer é que, no processo de criação, uma grande parte é conduzida pelo inconsciente do autor e, não, pelo seu consciente.

Isso é uma realidade não só na criação literária, mas em todas as artes. Como quando a gente acorda com uma melodia tocando insistentemente na cabeça e tem que correr para o instrumento em desespero e tratar de trazê-la para o consciente, ainda que esteja apertado para fazer xixi. Caso contrário, a gente esquece, exatamente como o sonho que a gente não conta para alguém assim que possível.

Johann Strauss Pai (foto) sempre usava longas camisolas para dormir. Isso porque ele acordava no meio da noite com um tema musical martelando em sua mente. Sem abrir os olhos, ele passava a mão no escuro sobre o criado mudo, apanhava a pena de dentro do tinteiro e anotava na camisola mesmo, sobre o peito, as notas do novo tema. Depois, voltava a dormir instantaneamente. No outro dia, era só estender a camisola ao lado do piano e copiar o tema, aprofundando-o a seguir. A empregada, acostumada, sabia quando já podia retirar dali a camisola e levá-la para lavar.

O escritor angolano José Eduardo Andalusa declarou que muito do que ele escreve lhe vem através de sonhos.

Na urdidura de um romance, no interagir incessante de narração, descrição, cenário, enredo, personagem, diálogo, vocabulário, é evidente que o personagem é o ator principal em cena, girando tudo o mais ao seu redor. E é exatamente a partir dele que as outras partes de redefinem e se transformam.

Por exemplo, quando, num romance uma minha protagonista sacana começa a ter percepções extrassensoriais não cogitadas inicialmente pelo autor em seu enredo original, a personagem se transforma e, como consequência, muda o teor dos seus diálogos e as pessoas com quem ela vai preferir dialogar. A transformação se torna irreversível e o romance toma um rumo inesperado, surpreendente para o próprio autor – da mesma forma como contou Jorge Amado, a respeito do desfecho final em Dona Flor e Seus Dois Maridos.

Em resumo, trata-se da interferência do inconsciente do autor, fazendo-se manifesta e concreta para sua própria surpresa.

Evidentemente, ainda é o autor que está no comando, mas ele está dando passagem a uma parte muito mais profunda e sábia de si mesmo, que pelo geral, aprimora muito o processo criativo.

ENTÃO, PARA QUE ESTUDAR TEORIA DA ESCRITA???

Essa é a reação normal de todo estudante a esta altura. Já que o personagem, como diz Jorge Amado, é que faz o romance, para que estudar construção de personagem?

Ora, a resposta parece evidente por si mesma. Para que estudar piano ou violão? Ora, para poder desenvolver a TÉCNICA com que os dedos e o ouvido vão aprender a dominar o instrumento, de forma a fazê-lo dócil intérprete do que flui da inspiração do compositor.

É óbvio que, se nós aprendermos a desenvolver a técnica por trás da arte de escrever, nós vamos poder dar muito melhor provimento àquilo que flui da nossa mente consciente e inconsciente, da nossa ideia, da imaginação e da inspiração.

Inclusive, é fundamental conhecer as regras até para poder desrespeitá-las com autoridade, para não deixar que elas nos engessem. E, ao mesmo tempo, para não deixar que nossa criação liberta se perca num vácuo de inadequações concretas, que farão o nosso livro, a nossa querida criação, NÃO-PUBLICÁVEL.

O que recomendável é estabelecer um diálogo constante e muito aberto entre técnica e inspiração. No meu caso, como já sou conhecedor das técnicas e suas regras, depois das dezenas de cursos que fiz e dei, essas duas caturritas ficam o tempo inteiro grasnando como se fossem gralhas, num conversê sem fim na minha mente.

Mas a inspiração, a tal que faz os personagens mudarem o tomarem o roteiro em suas mãos, acaba predominando. O que faço, então, é deixá-la assumir o leme e ver para onde ela nos conduz, a mim e todos os outros partícipes do romance. Mas tem uma hora em que a inspiração já deu o que tinha que dar. Então eu volto e passo a criticá-la com as armas da técnica. É a famosa REVISÃO.

Então é corta daqui, corta dali, escreve de novo, corta de novo, refunde, reorganiza – enfim, é quando uso o meu conhecimento prático e minha destreza ao teclado do piano para poder melhorar a melodia que veio crua, como um simples assobio. E, com mais conhecimentos técnicos ainda, digamos de outros instrumentos, eu posso refinar a melodia original do meu assobio e convertê-la em uma peça sinfônica, para uma orquestra de 80 músicos ou mais.

Acho que analogia com a composição e execução musicais é perfeita. Aprender sobre enredo, personagem, diálogo, cenário, descrição, narração, ritmo, aceleração, fechamento, leitura e gramática é o mesmo que aprender a tocar piano.

Leva-se um certo tempo, tem-se que fazer muitos exercícios, até que a gente seja capaz de sentar ao instrumento e não dar vexame, até que a gente possa ter o enorme prazer de saber que, qualquer melodia que venha, ela vai fluir perfeita e inalterada pela fluidez e perícia dos nossos dedos ao teclado.

Portanto, a inspiração, que vem do inconsciente, e a boa técnica de escrever, que a gente instala solidamente no consciente, não são excludentes, porém complementares. E é exatamente esta complementaridade, corretamente exercida, que faz o GRANDE ESCRITOR.

 

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