Revista Escrever

INDÍCIOS NÃO VERBAIS: Mostre, não conte?

O tema dos indícios não-verbais não é sempre percebido pelo escritor iniciante ou pelo antigo mais desatento. Aplicando o princípio do “mostre, não conte” (que, por favor, não é universal e nem é um axioma!), nós podemos usar muito sinais indiretos para comunicar o que queremos ao leitor, sem precisarmos dizer isso diretamente.

Vejamos este exemplo em um romance ambientado na 2a. Guerra Mundial, no ano de 1943. Jacque Rosen, o protagonista chegou com 3 meses de vida à Bélgica, trazido da Polônia; cresceu falando francês e fl amengo, foi herói da Resistencia belga. Foi levado prisioneiro para a Alemanha e forçado a tra- balhar como escravo na indústria metalúrgica. Finda a 2ª. Guerra e de volta a seu país, casa-se, abre seu negócio e pede sua naturalização como cidadão belga, aos 24 anos de idade. E, por razões meramente burocráticas, a naturali- zação lhe é negada! Preciso transmitir para meu leitor a decepção, a re- volta, a raiva, a angústia, o sofrimento, o desespero pelos quais o protagonista passa. E que o levarão à epifania do livro, quando ele amadurece sua decisão fi nal: “Se este país não me quer, eu também não quero este país!” E troca a Bélgica pelo Brasil. Eu posso fazer isso escrevendo deste jeito a cena que sucede a chegada da má notícia: “Jacques sentiu uma profunda revolta. Toda uma vida vivida nesse país, apenas os primeiros três me- ses fora dele, uma luta dedicada na Resistência, um período de sofrimento atroz como prisioneiro e es- cravo. E era assim que esse país lhe retribuía? Nega- va-lhe uma assinatura num simples pedaço de papel! Papel que faria toda a diferença para ele, pois nin- guém mais poderia chamá-lo polaco sujo!” Veja que, escrevendo desta forma, eu estou apenas contando, como narrador onisciente e na terceira pessoa, o que está acontecendo com meu protagoni- sta. EU, narrador, sei o que ele sente. E digo isso a meu leitor. Não estou mostrando nada, entrego o fato consumado, não deixo o leitor entrar mais fun- damente na pele do meu protagonista num momento crucial de sua vida, justo na grande crise que precede a epifania. Num momento desses eu preciso ser mais técnico. E, paradoxalmente, mais emocional. Preciso saber fazer meu leitor viver as emoções do protagonista, sentir Kristina Flour/Unsplash , não co te? 8

sua revolta e sua raiva, chorar as mesmas lágrimas, gritar os mesmos ou piores palavrões, sentir ímpetos assassinos de estripar o burocrata, mesmo que o pro­tagonista não sinta.

Então, nesse ponto, eu devo trazer a voz para a pri-meira pessoa. Eu, autor, não estou mais vendo de fora, confortavelmente, o sofrimento do herói, que eu sei que vai passar. Eu tenho que estar dentro dele, sentir tudo o que ele sente, assumir sua identidade, ser ele, sofrer o que ele sofre, chegar à mesma epifania pelo mesmo caminho doloroso.

E, principalmente, cumprir meu contrato de parce­ria e fidelidade com meu leitor. O protagonista sente, eu sinto, o leitor sente! Quando, juntos os três, depois de um desgaste emocional intenso, nós chegamos à grande transformação que é a epifania, vamos com­partilhar a sensação de superação, a certeza da mu­dança, o triunfo da coragem.

Fechamos o livro no fim do capítulo com uma eufo­ria que é autêntica; se choramos, as lágrimas secam em ri-so, respiramos fundo de novo, a dor no peito desaparece e encaramos o capítulo seguinte, o primei­ro do anteclímax, com um entusiasmo renovado. A vitória do herói é a vitória do leitor!

Repetindo a narração que poderia descrever a cena que sucede a chegada da má notícia:

“Jacques sentiu uma profunda revolta. Toda uma vida vivida nesse país, apenas os primeiros três me­ses fora dele, uma luta dedicada na Resistência, um período de sofrimento atroz como prisioneiro e es­cravo. E era assim que esse país lhe retribuía? Nega­va-lhe uma assinatura num simples pedaço de papel! Papel que faria toda a diferença para ele, pois nin­guém mais poderia chamá-lo polaco sujo!”

Isso é contar. O sucinto, o sintético, o econômico contar. Oito linhas de texto e está tudo ali resumido.

Mas vamos misturar o contar com o mostrar e ver onde chegamos nesse capítulo:

“Às 3 da tarde daquele pesado dia de outono, a luz no grande salão do Bistrot des Amis pareceu forte de­mais para Jacques, ofuscava-lhe os olhos, fazia-lhe doer ainda mais a cabeça. Sobravam-lhe quase 3 ho­ras até abrir as portas do negócio, por isso preferiu descer para a adega, no subterrâneo.

Os sapatos soaram pesados na íngreme escada de madeira, o odor de cerveja e serragem inundou-lhe o nariz, a luz mortiça consolou sua vista dolorida. Deu alguns passos irresolutos e, de repente, jogou-se senta-do sobre a serragem no chão, num vão entre barris de chope.

Fechou os olhos, segurou a cabeça na fronte com as duas mãos, e deixou-se enfim desabar. Estava só, po­deria chorar, a dor que fazia cabeça e peito doerem tanto exigia isso. Mas não! Estava com raiva demais para poder chorar.

– Meu Deus, meu Deus! – gemeu, encolhendo-se.

Jean-Luc e Tristan gritavam no pátio da escola:

– Polaco sujo! Polaco sujo! – as outras crianças, de 8 anos como ele, riam e debochavam também.

– Não sou polonês. Eu sou belga!

– O polaco sujo fugiu da Polônia. É polaco!

– Mas eu só tinha 3 meses. Sou tão belga como vocês. Não sei falar polonês. Sempre vivi aqui.

– Mentira, Polaco é sempre polaco. Estrangeiro. Mi-serável, mineiro sujo de carvão.

– Ele diz que não é polonês, Jean-Luc. Vai ver é ju­deu, como quase todos os polacos.

– Mentira! Meus papeis dizem eu era alemão lá, mi-nha mãe é alemã.

– Pior: é polaco sujo e é alemão desgraçado, que in-vadiu nosso país na Grande Guerra.

– Polaco! Judeu! Alemão! – berrou Tristan no seu ouvido.

Jacques poderia ter chorado. Era a vontade que sentia. Mas não! A raiva era demais para chorar. De repente saltou em cima dos dois meninos e os três se engalfinharam no chão. Ganharam uma semana de suspensão os três.

Agora, naquela adega, Jacques tinha 24 anos, ro-lava as pernas sobre a serragem do chão e as vozes dos meninos enchiam-lhe os tímpanos, como sempre fizeram, ano após ano de sua vida infantil e adulta.

De repente um salto, pôs-se em pé! Um chute num barril pequeno, que rolou pelo piso até estatelar-se manso na parede em frente.

– Burocratazinho filha da puta! Maldito! Des­graçado!

Os passos agora o levavam errático como uma fera enjaulada, para lá e para cá.

– Eu fiz tudo por esse país – a cabeça latejava! – Corri todos os perigos, ajudei as transmissões clan­destinas, enganei a Gestapo, nunca traí um compan­heiro!

Deu um tremendo murro no ar, extravasando a fúria.

Prisioneiro e escravo na Krupp – “Chamem o belga, o belga traduz”– os alemães diziam, os prisioneiros franceses diziam, os prisioneiros holandeses diziam. O Belga! Eu era o belga, o único belga num pavilhão com mais de 200 operários estrangeiros escraviza­dos na Alemanha. E eu adorava que me chamassem de bel-ga, porque belga eu me senti a vida inteira. Eu tinha orgulho de ser belga.

O ronco de um caminhão na rua, lá em cima, inun­dou o seu silêncio, calou o ruído ensurdecedor das fo­jas, das calandras, das esteiras, dos altos fornos, das bombas dos aliados caindo em Essen diariamente, da parede do hospital onde ele estava desabando sobre seu corpo e soterrando-o em meio à neve.

Jacques afrouxou as pernas sobre os joelhos, fi­cou um só instante assim e então jogou-se de bruços no chão. Enfim a explosão inevitável chegou. E ele chorou pela primeira vez desde que, três dias atrás, recebeu a terrível notícia: cidadania belga negada em caráter definitivo!

O choro convulsivo dominou todo o seu corpo por muito tempo. A dor mudou no peito, na garganta, nos olhos, intensificando-se primeiro. Depois, bem aos poucos, arrefeceu, o cansaço chegou dominador e total, uma lassidão dolorosa tomou conta de todos os seus músculos.

E, com isso, a necessária distensão chegou a seus pensamentos. E, com ela, uma lucidez que não lhe fora possível ter até então.

Jacques sentou outra vez e começou a respirar mais forte, superando a sensação de dor no peito. Mas, muito mais, superando a sensação de vergonha, der­rota, revolta, frustração, de ódio que havia engolido durante todas as horas daqueles três dias infernais.

Levantou, firmou-se nas pernas: uma nova ideia, muito clara, cresceu até dominar toda a sua mente. E ele disse, em voz alta, decidida, ostentando uma sere­nidade que lhe pareceu totalmente despropositada:

– Belga não sou. Polaco também não. Pois bem, se este país não me quer, então eu é que não quero mais este país.

Enxugou de vez os olhos, caminhou calmamente em direção à escada e falou outra vez, dirigindo-se aos barris de chope e cerveja, seus interlocutores e teste­munhas dos momentos finais de sua agonia:

– Nunca fui polonês no meu coração. Sempre fui belga, mas belga nunca serei. Então serei cidadão de outro país, que eu queira e que me queira.

Momentos depois, o homem que reentrou no salão de seu Bistrot era outro. Havia afundado no porão da adega com olhos de desespero, com alma de re­volta, era um homem magoado e perdido. Mas agora aquele par de olhos tinha um brilho estranho, os pas­sos tinham a força da certeza, eram do andar firme de um homem apaziguado e renascido.”

MOSTRE, NÃO CONTE

A agora? As 8 linhas viraram 16 linhas, mais uma página inteira!

Você acaba de ver a enorme diferença entre contar e mostrar. Contar sintetiza. Mostrar dramatiza. Quando eu preciso acelerar o ritmo da história, eu conto simplesmente. Quando a cena é mais impor­tante, eu me detenho nela e mostro. Posso trocar um único parágrafo sintético por duas, três páginas in­teiras ou mais.

Você pode ficar confuso com essa história de “Mos­tre, não conte”. Porque, a rigor, tudo é contar. Eu sou obrigado a contar ao meu leitor aquilo que eu quero que ele saiba e, principalmente, que ele imagine, que ele sinta. Porque, afinal, eu não tenho uma câmera cinematográfica para mostrar – e só mostrar – para ele.

Já o contar é que é o grande problema para o cinema e a TV. Eu filmo uma cena mostrando uma rua de um bairro popular, numa noite de chuva, passeando com a câmera ao longo das fachadas das lojas e das paredes desbotadas e pichadas. Mas eu não tenho como dizer ao meu espectador que aquela é a rua onde o perso-nagem X viveu sua infância e que ele está ali num re­torno nostálgico, em busca de uma antiga namorada. Eu não posso abrir a cena com uma narração ou um texto. Essa informação não entra pela câmera em seu passeio, vai ter que ser colocada em cena através de algum diálogo ou monólogo em voz alta nesta cena. Ou isso acabou de ser feito na cena anterior.

Já num livro eu posso abrir a cena com a narrativa, contando a localização exata no espaço e no tempo, o narrador sabendo da história, do passado e do que se passa agora na cabeça do personagem principal. Mas, em compensação, eu vou ter que me virar e trabal­har muito se eu quiser dar muita informação sobre as tais fachadas das lojas, os grafits desbotados sobre as paredes, as portas, as vitrines, os automóveis, a ilumi­nação, os transeuntes, os clientes dos bares, a cara do tempo, a chuva ou neblina.

No filme isso é fácil demais. A câmera é especiali­zada em mostrar. Ela desliza no trilho e nos informa instantaneamente sobre aquilo que o escritor vai ter que suar para dar uma ideia limitada, sem cansar ou desinteressar o leitor com descrição em excesso, uma das coisas mais chatas da literatura.

Para nós, que escrevemos ficção para leitura, con­tar é muito fácil, mostrar é mais difícil. Exatamente o contrário do acontece com o roteirista de cinema ou televisão, para quem mostrar é muito fácil e contar é muito difícil.

Porém, é justamente no talento para mostrar que se concentra a maior ou menor qualidade do escritor de ficção. Exatamente porque mostrar, para nós, é mais difícil. E, quanto mais bem você souber mostrar, mais bem-sucedido você será ao contar sua história.

Veja, num nível muito mais rudimentar, o caso do bom piadista. Além de ter uma memória afiada para desfiar um alentado repertório, o que mais agrada aos seus ouvintes é sua capacidade de representar, de dramatizar a piada, de puxar a risada no momen­to certo e culminante. Ele é um artista de teatro. Ele mostra, enquanto conta. Por outro lado, você conhece certamente um bom punhado de contadores de piada que são absolutamente sem graça. Eles são sem graça, não a piada! Eles contam a anedota, não mostram. Você não conta uma piada, você mostra uma piada, se quiser ser bem-sucedido na empreitada. Você inter­preta uma piada.

Da mesma forma, você já deve ter ouvido um pia­nista sem talento tocando um prelúdio de Chopin. Parece um mecânico martelando a lataria do seu car­ro. Depois você ouve um virtuose que não toca apenas, interpreta a mesma peça, e você é capaz até de levi­tar. Tocar é contar, interpretar é mostrar. Interpretar transmite emoção em alta intensidade.

Mas atenção: isso não quer dizer que, em ficção, você não deve contar, só deve mostrar. Nada disso! Você vai ter que aprender a usar os dois recursos e dosá-los tecnicamente de acordo com a importância da cena e com o ritmo que você quer imprimir a ela.

Contar acelera, mostrar ralenta. Contar sumariza, mostrar dramatiza. Contar é objetivo, mostrar é subje­tivo. Contar é de fora para dentro, mostrar é de dentro para fora.

Contar vem pronto e acabado da cabeça do narrador (que é o escritor, afinal) para a do leitor. E isso às vez­es é não só conveniente, como altamente necessário. Mostrar é falar com o leitor de dentro da cabeça do persona-gem, mobilizar seus cinco sentidos, seus pen­samentos, suas emoções.

E fazê-los passar para a cabeça do leitor com libera-lidade, deixando-o com liberdade para imaginar, para criar, para supor possíveis desdobramentos nas pági­nas seguintes. Esse é o verdadeiro jogo da ficção. Um jogo sutil entre contar e mostrar, em que, no fundo, tudo é contar.

Mas isso depende de como você conta: contou sin­tético, foi objetivo, é contar propriamente dito. Con­tou dramatizando, foi subjetivo, transmitiu emoção e pensamento, inclui o leitor no bolo – aí é mostrar. Ou seja, é contar e contar. Só que tudo depende de como você conta.

Porque você não tem uma câmara na mão para mostrar. Você vai ter que mostrar com palavras, nossas unidades benditas de trabalho. As palavras e a sua mestria, como autor, em alocá-las e combiná-las é que vão construir a sua tomada de cena: luzes, câmera, ação!

| Tema: Diálogo |11

INDÍCIOS

NÃO-VERBAIS

Agora vamos, finalmente, dar atenção ao assunto proposto no título, os indícios não-verbais. Eu não po­deria chegar a ele sem passar pelas etapas anteriores, principalmente sem ressaltar a diferença entre contar e mostrar.

Não-verbal é tudo o que não tem a ver com o que é dito, verbalizado, diretamente, seja pelo narrador, seja pelos personagens. Se eu escrevo:

Escondeu-se nos arbustos, com receio de ser perce­bido, eu estou contando.

Mas se eu escrever:

Dois minutos? Três? Quanto tempo levariam para perceber sua presença? “Deus, se eles me pegam aqui, estou liquidado!” Contraiu-se de bruços entre os ar­bustos, ofegante, um suor frio escorrendo da testa, uma estátua de sal”.

Então eu estou mostrando.

E aqui nem tudo o que eu escrevo tem apenas deno­tação direta. As conotações, analogias, comparações, metáforas ou metonímias que são usadas num texto assim transformam a narrativa de um simples contar em um intenso mostrar.

A narrativa linear do contar: “Escondeu-se nos ar­bustos, com receio de ser notado” não passa ao leitor a intensidade dramática da situação e da condição em que o personagem se encontra.

Escondeu-se entre os arbustos. Sim, e daí? Com re­ceio de ser notado. Ah, não quer ser visto. Sim, e daí?

Não que ser notado porque vai dar um susto, vai fa-zer uma brincadeira, vai espiar as meninas no banho – vai se divertir, enfim. Eu vou ter que expor que o personagem enfrenta uma situação de risco com pelo menos mais uma frase de narrativa direta.

Veja agora esta outra construção:

Dois minutos? Três? Quanto tempo levariam para perceber sua presença? Isso transmite a ideia de tempo, de urgência. Começa a desenhar a situação de risco, que se completa na frase seguinte. Mas, nesta, o personagem ponto de vista (PPV), o narrador, deixa de ser o onisciente em terceira pessoa e passa a ser o próprio protagonista da cena, que narra em primeira pessoa: “Deus, se eles me pegam aqui, estou liquida­do!”

Nesse momento o leitor entra na pele do person­agem e passa a viver sua tensão, que só se intensifica a seguir.

E, a partir daqui, temos uma série de indícios não-verbais que informam o leitor sobre a situação do pro­tagonista: Contraiu-se de bruços mostra um esforço muscular para ocupar menos espaço, esconder-se ain­da mais, conota tensão extrema. Mas você não diz que ele está tenso, não verbaliza.

‘Ofegante’ pode acentuar ainda mais o medo, mas é dúbio, pois pode ser também consequência de o per­sonagem ter corrido antes. ‘Um suor frio escorrendo da testa’, no entanto, é inequívoco.

Aqui a palavra-chave é o adjetivo frio. Suor frio é sintoma de medo. E a expressão ‘suor frio’ resgata e qualifica assim o ‘ofegante’. Mas você não diz que ele está com medo, não verbaliza.

‘Uma estátua de sal’, metáfora que traz à mente a imagem bíblica da mulher de Lot, arremata de forma contundente a narrativa, mostrando o personagem rigidamente paralisado, tal sua tensão, tal o seu medo. Mas você não diz que ele está com tanto medo que fica paralisado. Não verbaliza.

Tudo isso são indícios não-verbais.

O autor poderia estragar a força deste texto substi­tuindo a metáfora implícita ‘uma estátua de sal’ por uma comparação: ‘Ficou paralisado como uma está­tua de sal’. Isto é uma comparação, está ali a palavra como para fazê-lo. Veja que a construção perde força e, ao mesmo tempo, você rouba o leitor da delícia de fazer ele mesmo a metáfora, vivê-la dentro de sua mente, sua memória (mulher de Lot) e sua imagi­nação.

Veja agora trechos usados no romance:

“... preferiu descer para a adega, no subterrâneo. Os sapatos soaram pesados na escada de madeira, o odor de cerveja e serragem inundaram-lhe o nariz e a luz mortiça consolou sua vista dolorida. Deu alguns passos irresolutos e, de repente, jogou-se sentado so­bre a serragem no chão, em um vão entre barris de chope. Fechou os olhos, segurou a cabeça pela fronte com as duas mãos e deixou-se enfim desabar. Estava só, poderia chorar, a dor que fazia cabeça e peito do­erem tanto exigia isso. Mas não! Estava com raiva de­mais para poder chorar. Gemeu, encolhendo-se e viu-se novamente como uma criança na escola quando as outras...”

Aqui usa-se um recurso forte para trazer o leitor

| Tema: Diálogo |12 | Tema: Diálogo | para dentro da situação do personagem, para mos- trar: Explora-se os sentidos físicos! Audição (o som dos sapatos na escada), olfato (chei- ro de cerveja e serragem), visão (luz mortiça). Pronto, o leitor está dentro da adega agora, sua imaginação lhe traz inevitavelmente o cheiro de cerveja, quiçá até mesmo o de serragem, que provavelmente lhe é menos comum no dia-a-dia. Você não se detém para pensar nisso, enquanto está lendo ali, na corrida, seguindo atento a narrativa; mas você ouviu, sim, um ruído de sapatos numa escada de madeira, ouviu o seu particular som de sapatos na ma- deira, sua particular experiência de ruídos desse tipo, que você já ouviu na vida real e nos fi lmes. Essa é a essência mesma do trabalho do escritor de fi cção: combinar palavras de tal forma que o leitor embarque em sua viagem, viva as emoções da cena e dos personagens, à sua própria maneira – porque não pode ser de outra forma. Cada um de nós, ao ler numa fração de segundo(!) a menção ao ruído dos sapatos na escada íngreme de madeira, formou automaticamente sua imagem, viu a escada, ouviu os passos. Só que viu a sua escada, íngreme dentro do seu conceito subjetivo ou memo-rizado de íngreme; e ouviu os passos da sua maneira. Mas viu, ouviu e até cheirou o ar impregnado de aro- mas de cerveja e serragem – os seus aromas mentais de serragem e cerveja. Por coisas assim é que mostrar é tão importante. É levar ao máximo nossa cumplicidade com nossa lei- tora, com nosso leitor, nossos grandes parceiros nessa jornada deliciosa da literatura de fi cção. Veja agora estes outros trechos: “...De repente um salto, pôs-se em pé! Deu um chute num barril pequeno, que rolou pelo piso até estatelar- se na parede em frente; Burocratazinho fi lho da puta! Maldito! Desgraçado! Os passos no porão o levavam errático como uma fera enjaulada. Eu fi z tudo por este país – a cabeça latejava!; Deu um tremendo murro no ar, extravasando a fúria. O salto, o chute no barril, traduzem raiva. Não pre- cisamos dizer isso, não verbalizamos. “A cabeça late- java” traduz dor. Não se diz isso, não se verbaliza, deixa-se como metáfora para o leitor terminar a cons- trução dentro de sua própria mente. “Deu um tremendo murro no ar, extravasando a fúria. De propósito usa-se aqui no artigo esta ex- pressão em negrito. No livro ela foi omitida. Se o au- tor a usa, ele está contando. Ele, onisciente, diz para o leitor que o personagem está extravasando sua fúria. Se não a usa, é o leitor que infere a raiva; o autor a está mostrando para o leitor, usando um indício nao- verbal: “Deu um tremendo murro no ar: Fui prisioneiro e escravo na Krupp, etc... Quer dizer, não se diz no livro, para o leitor, que aquele gesto era para extravasar a fúria, porque é óbvio que o leitor é inteligente e pers- picaz o sufi ciente para perceber isso. Mas ele vai ter o prazer de chegar a essa conclusão por si mesmo, de forma automática. Essa é a tal parceria com o leitor a que nos refe- rimos. E a que Ernest Hemingway se refere em sua Teoria do Iceberg, quando insiste que o autor não pode encher o leitor de descrições e pormenores nos mínimos detalhes, como se este fosse um incapaz sem imaginação. Concordo com Hemingway e uma das formas mais brilhantes de fazer isso na pratica é usar – de forma ocasional e bem calculada, sem exageros – os indícios não-verbais. Para concluir, vamos ver este trecho: “... O ronco de um caminhão na rua, lá em cima, estremeceu a adega, inundou o seu silêncio, calou o ruído ensurdecedor das forjas, das calandras, das esteiras, dos altos fornos, das bombas dos aliados caindo em Essen diariamente, do fragor mortal da parede do hospital desabando sobre seu corpo, soter- rando-o em meio à neve. Ele afrouxou as pernas sobre os joelhos, fi cou um só instante assim e então jogou-se de bruços no chão...” Aqui o leitor sabe, porque já leu nos capítulos an- teriores, que o protagonista passou por todas essas experiências e ouviu todos esses ruídos, que agora as-sombram sua mente na adega, quando foi prisioneiro na Alemanha. Forjas, calandras, esteiras, altos-fornos, bombas, desmoronamento. Todos esses sons, bem descritos nos capítulos já lidos, voltam instantanea- mente à cabeça do leitor, que reconstrói de forma au- tomática, em sua própria mente, tudo o que se passa na mente atormentada do personagem naquele in- stante. E o autor não precisa dizer nada disso, não precisa verbalizar, pois o esperto leitor já sabe de tudo, lem- brou de tudo, reviveu tudo, todas as emoções! Inten- samente. E numa fração de segundo!

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